Atendimento psicopedagógico mediado por tecnologia
A necessidade de isolamento social causada pela ameaça do coronavírus fez com que toda a nossa rotina se modificasse e que muitos serviços da área de educação e saúde fossem interrompidos. Já em outros casos, os profissionais tiveram que se adaptar ao uso de tecnologias abruptamente para poder dar seguimento a seus trabalhos remotamente.
E assim também foi com a psicopedagogia. Houve a necessidade de interromper atendimentos presenciais, mas a mudança nas rotinas das famílias e a introdução de novas tecnologias nas atividades escolares trouxeram à tona a importância da ajuda do psicopedagogo para a adaptação e potencialização dessa nova realidade.
Não se sabe ao certo por quanto tempo a necessidade de isolamento social irá se impor, e há a possibilidade de que tenhamos que alternar períodos de isolamento com períodos de flexibilização. Essa situação torna urgente a reflexão sobre a adaptabilidade de nossa profissão a este novo contexto, pensando que, embora as trocas da presença dos corpos num mesmo espaço não possa ser substituída, é importante pensar na funcionalidade de sistemas híbridos para o futuro.
São considerados atendimentos à distância aqueles que utilizam recursos tecnológicos como meio de comunicação. E, ao pensarmos nessa possibilidade, temos que pensar em questões éticas e nas técnicas utilizadas para a realização desses processos. Como pensar este contexto tendo em vista o trabalho psicopedagógico?
Trago esta postagem como uma reunião de conteúdos, reflexões e ideias recolhidas desde o início do isolamento social, considerando lives, posts, artigos, vídeos e aulas feitas por diversos profissionais e instituições da área de psicopedagogia, psicologia, educação e saúde em geral.
Esta é uma publicação que pode se modificar conforme novas ideias, conteúdos e reflexões surjam, com a data da última atualização no final. Além disso, é importante reforçar que estas não são diretrizes que devam ser seguidas sem questionamento nem representam necessariamente a opinião e postura das fontes utilizadas.
Se você tiver ideias, críticas ou considerações a respeito deste texto, por favor, escreva para: erica.alvim@gmail.com .
Atendimento presencial x atendimento online
A oferta de serviços por meio da internet já era uma área em expansão há bastante tempo, mas depois da necessidade de um período indeterminado de isolamento social, ela se fez urgente.
O trabalho do psicopedagogo clínico, no entanto, acontece a partir da interação presencial, com jogos, técnicas, criação de vínculo, parceria com os pais e a escola. E não existe nada que substitua o encontro de duas ou mais pessoas: a troca de energia, todas as informações e registros que o corpo traz, a possibilidade de observar de perto. Então podemos partir do princípio de que o atendimento presencial é insubstituível e deve ser sempre a primeira opção.
Mas e se não estivermos falando de substituição, mas de uma alternativa de atendimento em situações em que a interação presencial não é possível? E, além do isolamento social causado pela presença do coronavírus em todo o mundo, podemos pensar também em outras situações, como aquelas em que a distância se impõe por limitações como mudanças, deficiências físicas, marginalização, falta de assistência local, institucionalização, hospitalização ou mesmo resistências causadas por questões subjetivas.
Enfim, não se deve subestimar o potencial da comunicação mediada por tecnologia. Ainda mais se estamos falando do atendimento de crianças e adolescentes, que são “falantes nativos” da linguagem digital e aprenderam a se relacionar por meio delas desde que nasceram. A popularidade e a grande adesão às redes sociais são indícios de que este meio pode e deve ser mais explorado para fins terapêuticos e educacionais: na internet, as pessoas começam e mantêm relacionamentos, fazem desabafos, estudam, pesquisam, aprendem.
Além disso, é muito comum que, ao se relacionarem com alguma mediação tecnológica, as pessoas consigam se sentir menos retraídas e vulneráveis, podendo se colocar mais em suas ações e falas. Não é fantasioso pensar que um primeiro contato virtual possa ajudar aqueles que têm dificuldade, medo ou vergonha de pedir ajuda, podendo ser uma ponte para o atendimento presencial, ao contribuir para o estabelecimento de vínculo e a quebra de preconceito. Isso sem falar que a possibilidade de manter os registros dos atendimentos pode ajudar o profissional na análise do caso.
Quando atender à distância?
O atendimento online aumenta as possibilidades de acesso, flexibilidade, comodidade e disponibilidade, além de poder se adequar às especificidades de qualquer aprendente. É um recurso adequável e personalizável. O aprendente pode ser atendido na comodidade de seu lar e se sentir mais à vontade com isso, ao “receber” o psicopedagogo em sua casa em vez de ir até o consultório, onde é o psicopedagogo que o recebe. Porém a comodidade não deve nunca ser a motivação da escolha de um atendimento à distância, mas a necessidade.
O aprendente e sua família (e não o psicopedagogo) devem estar no centro das decisões sobre se e como atendê-lo à distância. Antes de optar pelo atendimento online, é importante fazer perguntas como:
O aprendente se beneficiará de ser atendido dessa forma?
A interrupção abrupta dos atendimentos presenciais pode causar uma regressão daquilo que já se havia aprendido?
A criança ou o adolescente deseja continuar os atendimentos?
O aprendente se sente confortável sendo atendido dessa forma?
A família deseja ter esse suporte?
Se as respostas forem positivas, é provável que o atendimento à distância seja uma boa opção.
Tipos de atendimento à distância e possibilidades
Em relação à psicopedagogia, os tipos de atendimento à distância que se pode fazer são o aconselhamento e o atendimento online (individual ou em grupo); e a moderação de grupos de apoio, discussão ou estudo. Estas intervenções podem ser síncronas (em tempo real), como chat , áudios, telefone e chamada de vídeo; ou assíncronas (com intervalos de tempo entre as mensagens trocadas), como e-mails, fórum, SMS e mensagens de voz e de texto quando não são respondidas imediatamente.
É um esforço inútil e provavelmente pouco frutífero tentar reproduzir à distância exatamente as mesmas condições do consultório. O atendimento online pode nos fazer perder muitos recursos de análise do aprendente, como a espontaneidade (no caso de chats e atendimentos assíncronos), tom de voz (em comunicações escritas), gestual e expressões faciais (mensagens de voz e texto). Mas, ao mesmo tempo, a tecnologia é cheia de possibilidades que podem ser exploradas, e o atendimento à distância pode se dar de diferentes formas, sempre levando em conta as necessidades e os recursos (internos e externos) de cada pessoa.
O que o psicopedagogo pode fazer por seus aprendentes à distância? Alguns exemplos são:
Dar sequência a atendimentos que já vinham acontecendo, no qual já tenha havido uma avaliação e haja um vínculo já bem desenvolvido entre ambos.
Orientar e montar um plano de ação para a família em relação à rotina e os estudos.
Entrar em contato com outros profissionais que atendam a criança ou o adolescente para compor orientações.
Há dificuldade para pensar em primeiros atendimentos à distância. É possível pensar em formas de intervenção por meio de tecnologia e até mesmo em como fazer entrevistas e anamnese. Porém não é fácil pensar em formas de avaliação, uma vez que técnicas como as provas piagetianas e a entrevista operativa centrada na aprendizagem (Eoca) dependem de materiais específicos, manipulação de objetos, interação.
Entre os recursos que podem ser utilizados no atendimento estão:
desenhos;
jogos online que possam ser jogados em dupla;
mímica;
contação de histórias;
leitura;
música (canto, campeonato de karaokê);
jokenpô ou par ou ímpar;
fantoches;
apresentação da casa e de seus brinquedos, coleções, material escolar, canto de estudo;
escolha de diferentes locais da casa a cada atendimento;
comunicação com os pais ou com a criança por meio de fone de ouvido sem fio enquanto ela brinca com um adulto de apoio;
aplicativos e sites educativos.
O que deve ser levado em consideração?
O psicopedagogo sempre deve ter metas, mas ajustá-las conforme o desenrolar dos atendimentos. De forma que, no atendimento online, assim como no presencial, as necessidades imediatas do aprendente e de sua família devem ser levadas em consideração, e as atividades propostas sempre devem tê-lo como protagonista.
O atendimento online não precisa ter a mesma configuração do atendimento presencial e pode ser adaptado ao perfil do aprendente. Em vez de uma sessão de 50 minutos, por exemplo, é possível fazer sessões mais curtas para crianças que tenham mais dificuldade de reter a atenção por um tempo maior.
Outro ponto de atenção é a necessidade de a criança ser atendida com um adulto de apoio ao seu lado ou não. Quanto mais nova, maior será a necessidade desse apoio extra. Por outro lado, nem todas as crianças se sentem à vontade quando os pais estão presentes no atendimento, porque, quando estão apenas com o psicopedagogo, sentem-se mais à vontade para poder errar e demonstrar suas dificuldades sem que se sintam julgadas. Alguns questionamentos importantes são:
Qual a idade da criança?
Ela precisa do apoio de um adulto para que seu atendimento aconteça?
Ela deseja a presença de alguém para ajudá-la ou se sente incomodada com a ideia?
É necessário que alguém esteja por perto para solucionar eventuais problemas técnicos?
O mais importante é que o aprendente se sinta acolhido, seguro e se sinta ouvido em todos os seus questionamentos e inseguranças.
Pré-requisitos
Ao optar pelo atendimento online, o psicopedagogo e os responsáveis pelo aprendente devem ter consciência de que ele implica em outro contrato, com outros combinados. Antes de iniciar o atendimento à distância, é necessário que o psicopedagogo:
Planeje a sessão.
Separe o material necessário.
Escolha um local privado de sua casa, para evitar interrupções e assegurar a sua privacidade, bem como a de seu aprendente.
Prepare o aprendente e/ou os responsáveis sobre como será o atendimento.
Avise aos pais o que eles precisam providenciar para que isso aconteça.
Tenha um plano B, porque nunca se sabe quando problemas técnicos podem acontecer.
Deixe claro como o trabalho será cobrado.
O psicopedagogo deve solicitar que os pais ou responsáveis providenciem:
Celular, tablet ou computador, sendo que este último é a melhor opção, por deixar as mãos livres.
Suporte para celular ou tablet, se necessário/possível. Eventualmente, é possível utilizar mais do que um dispositivo: o computador para jogar e um outro, no qual o psicopedagogo e o aprendente possam se ver ou trocar mensagens de voz. Se não for possível, uma caixa de chat também pode ser usada no próprio computador.
Fones de ouvido, uma vez que dão mais privacidade e melhoram a qualidade do som durante a comunicação. Crianças normalmente sentem-se menos incomodadas com os fones do tipo concha (headphones). Nos casos em que haverá mais movimentação pelo tipo de atividade ou pelo perfil da criança, fones sem fio podem ser uma boa pedida.
Acesso a internet.
Instalação e teste prévios dos aplicativos e sites que serão usados: O aplicativo está disponível nos dispositivos da família? O site está abrindo?
Um local privado, seguro e de preferência bem iluminado para que o atendimento aconteça. É importante que a criança esteja num lugar em que não haja instrumentos ou móveis que a possam machucar, bem como se sinta à vontade pra fazer as atividades e falar sobre o que quiser.
De nada adianta, porém, que o psicopedagogo chegue com uma “lista de exigências” se a família não tem como providenciá-las. Nem sempre a família tem condições financeiras, disposição ou instalações adequadas para cumprir todas essas missões. Portanto é necessário incluir a família em todas as decisões e ter sensibilidade e flexibilidade para achar o formato ideal para cada uma.
Regulamentação
Não existe um órgão normativo da psicopedagogia porque a profissão ainda não foi regulamentada, e isso nos deixa sem parâmetros e orientações oficiais sobre o que é permitido ou não em relação ao atendimento psicopedagógico à distância.
Dessa forma, podemos nos guiar pelas orientações da Associação Brasileira de Psicopedagogia (ABPp), o Código de Ética do Psicopedagogo e a Constituição Federal, que é soberana e está acima de qualquer conselho regulamentador de profissões. O Marco Civil da Internet (Lei n. 12.965/2014) e o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) (Lei n. 8.069/1990) são exemplos de leis que podem ser consultadas quando se quer pensar a respeito da possibilidade de trabalho à distância para o psicopedagogo.
Levando em consideração o Código de Ética do Psicopedagogo, pode-se entender que a utilização do meio online poderia descaracterizar o fazer psicopedagógico, por ser incompatível com suas técnicas. Porém o código também nos fala que a psicopedagogia é de natureza interdisciplinar; que devemos promover a aprendizagem garantindo o bem-estar e utilizando os recursos disponíveis; e que o psicopedagogo deve se manter atualizado quanto aos conhecimentos científicos relativos à aprendizagem e colaborar com o progresso da psicopedagogia.
Em seu site, a ABPp se manifestou em relação a esta possibilidade por meio de cartas abertas, sendo a última publicada no dia 7 de abril. A associação afirma que é necessário que, ao fazer o atendimento online, se mantenha a autenticidade do que é um atendimento psicopedagógico e que ele seja feito apenas como uma alternativa temporária ao atendimento presencial e não como uma substituição. A entidade inclusive preferiu se referir a esse tipo de trabalho como “assistência virtual com uma atitude psicopedagógica”.
No dia 17 de março, outra entidade de referência para a psicopedagogia, o Sindicato dos Psicopedagogos do Brasil (Sindpsicopp-br), havia publicado orientações em que aconselhava que o atendimento online fosse feito apenas com adolescentes, jovens e adultos (não com crianças). Depois disso, o sindicato não voltou a atualizar as orientações.
Plataformas e segurança
Os dois maiores problemas que rondam o atendimento online são segurança dos dados e problemas técnicos.
De acordo com o Marco Civil da Internet, todas as pessoas que usam a internet têm direito à privacidade e a ter seus dados pessoais protegidos. Estes direitos também são garantidos para crianças e adolescentes por meio do ECA, que afirma que eles têm direito à privacidade e devem ser respeitados nesse sentido. E de acordo com o Código de Ética do Psicopedagogo, é responsabilidade do profissional guardar segredo sobre as informações a que tem acesso durante o atendimento, assim como manter os prontuários sigilosos.
Portanto, é primordial realizar seu trabalho numa plataforma segura, que possa garantir que os dados do psicopedagogo e do aprendente estejam seguros. Entre as plataformas mais conhecidas estão WhatsApp, Skype, Google Hangouts e Zoom, e, para as primeiras orientações, principalmente para pessoas que não têm muita intimidade com a tecnologia, é realmente possível utilizar plataformas mais conhecidas. Porém deve-se questionar se a segurança é garantida ao utilizá-las e pensar em alguma alternativa adequada para profissionais de saúde.
O sistema de saúde público da Inglaterra, o Serviço Nacional de Saúde (NHS), não recomenda o uso do Zoom para atendimento a pacientes, porque a plataforma já teve problemas de invasão de hackers, conteúdo inadequado, vírus e acesso de terceiros.
O profissional deve saber que pode ser responsabilizado por um eventual vazamento de dados, pois é ele que oferece o serviço. E apesar de haver leis que punam as pessoas que desrespeitam a privacidade na internet, o vazamento de conteúdo pessoal pode não ser reversível e deixar marcas muito profundas em suas vítimas.
Mais algumas considerações
Ao pensarmos a possibilidade de atendimentos psicopedagógicos à distância, é importante lembrar que nossas discussões serão mais ricas a partir de nossas práticas. Só assim poderemos compreender melhor suas possibilidades e limitações. É um contexto novo, que demanda uma construção de seus profissionais.
Crianças e adolescentes, como “falantes nativos” da linguagem digital, têm muita desenvoltura nesse meio e são bastante críticos em relação a seus formatos e funcionalidade. De maneira que qualquer tentativa malsucedida virá à tona rapidamente.
Já os pais ou responsáveis devem ser muito valorizados por seu esforço e boa vontade para fazer as sessões acontecerem e funcionarem, pois nada se faz sem eles. Quando o aprendente sente que há parceria entre seus pais e o psicopedagogo, sentem-se muito mais seguros e confiantes.
Mais do que tentar reproduzir a experiência de consultório, é necessário utilizar os meios disponíveis para ofertar experiências únicas, cuja eficácia será avaliada a partir do progresso e do sentimento de acolhimento e satisfação do aprendente e de sua família.
Fontes
Para esta publicação, foram consultados:
Os sites da ABBp e do Sindpsicopp-br.
Os artigos científicos “The working alliance in online therapy with young people: preliminary findings”, de Terry Hanley, e “Computer-based and online therapy for depression and anxiety in children and adolescents", de Karolina Stasiak.
Posts do Instagram da psicopedagoga Nádia Bossa e da fisioterapeuta Luciana Ramos, como “Atendimento online: não faça dessa maneira” e “Como cobrar os atendimentos online?".
Live “Soluções criativas para enfrentarmos este momento", da psicopedagoga Tatiane Castro (a live não está mais disponível).
Live da psicopedagoga Daniela Janssen, “Como lidar com o consultório em meio ao coronavírus?".
Aulas on-line “Argumentos éticos favoráveis da psicoterapia online” e “Psicoterapia online: crianças e adolescentes (parte 1)”, da psicanalista Claudia Catão, da Casa dos Insights (as aulas não estão mais disponíveis).
Live “Atendimento infantil: crianças e terapeutas online", das psicólogas Tauane Gehm e Ana Beatriz Chamati (a live não está mais disponível).
*Última atualização em 8 de maio de 2020.